2.7.03

Teatro do Absurdo

Refletindo sobre a facilidade com que antigos militantes da esquerda migraram sem escalas à ortodoxia econômica, me vem à lembrança a peça de Teatro do Absurdo de Eugene Ionesco, na qual o autor busca uma explicação para o fenômeno do fascismo. De que forma uma idéia tosca como a de se transformar em um rinoceronte ou num assassino de judeus consegue ganhar as mentes dos mais distantes aos mais próximos e se transformar numa assustadora mania das massas?

Há dez ou 15 anos atrás, me lembro de uma notícia na televisão em que um empertigado conselheiro do mundo econômico, entre relinchos e tremeliques, clamava pelo fim das carroças e por um choque de capitalismo. Alguns meses depois, em uma cerimônia de natal ou algo assim, lembro de um primo de minha prima rosnar de maneira muito parecida, atacando a barbárie dos serviços públicos. Depois, assistindo a uma aula na faculdade, pela primeira vez pude acompanhar in loco a transformação de um professor em rinoceronte - digo, liberal. Sua pele foi ficando acinzentada, entre uma gargalhada e outra escutávamos guinchos aterrorizadores e nas suas falas transparecia um desejo imenso de que as leis do mercado regulassem a vida econômica. Alguns anos depois, o fenômeno se repetiu com um colega de trabalho, que jogava poeira sobre os ombros e atacava as subvenções sociais. De quebra, entusiasmado com sua nova existência, me acusava de dinossauro, como se os rinocerontes tivessem surgido ontem. Naquela época, muitos vizinhos já ostentavam seus cornos sem rubor. De quatro, entravam em financiamentos atrelados ao dólar e regozijavam-se de seus novos contratos de trabalho em regime flexível. Lembro-me que na fila do banco inevitavelmente surgiam vários espécimes, sempre relinchando e defendendo a venda das estatais. Em uma outra ocasião, um economista emergente que mal conseguia digitar seus textos com suas patas pesadas dizia que a taxa de câmbio é um preço como qualquer outro e portanto deveria variar como varia o preço da banana.

Ah, companheiros, foram anos indigestos. Lembram-se do cheiro da rinocerontada impregnado nas ruas, nos ônibus, nas casas daqueles que eram a presa favorita dos quadrúpedes? Teve gente, ou bicho, já não lembro mais, que mesmo sem emprego e enforcada, vangloriava-se do real forte e dos juros altos capazes de atrair poupança externa para esse nosso Brasil.

A coisa só foi melhorar mesmo durante a campanha para presidente que levaria o Lula ao governo. Naquele momento finalmente o encanto se quebrou e muito rinoceronte desapareceu, escafedeu-se. Com muita competência política e com o resgate de valores e interesses até então renegados ao mundo dos homens, foi possível constranger a ética dos rinocerontes e tocá-los do cenário político.

Mas companheiros, para surpresa geral e gáudio do profeta do apocalipse George Soros, já se vão lá uns tantos meses de governo de esquerda e quem parece dar as cartas ainda são os rinocerontes. Tenho escutado coisas estranhas, grunhidos graves, quase inaudíveis aos humanos, indicando que existe uma ordem econômica natural, preços de equilíbrio, que para que o desenvolvimento floresça os fundamentos macroeconômicos devem estar de acordo com o que pleiteiam os capitais de estrangeiros de curto prazo,...

Ah, companheiros, o que será de nós? Muitos de nossos amigos mais próximos vem agora exibir com gosto seus focinhos desconcertantes.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos - junho, 2003 ]